Sociologia e arte: o que a sociologia da arte pode dizer aos artistas ao falar com eles sobre o que eles mesmos fazem?

No dia 31 de outubro de 2012, participei de um debate organizado pelo C.A.S.A (Centro de Articulação de Saberes Artísticos). Fui convidado* para contribuir com a palestrante Laura Buarque Gadelha, que ministrou uma fala a respeito da relação entre produção artística e leis de incentivo à cultura de uma forma geral.

Nesse texto faço relato breve de minhas impressões do encontro. Sobretudo, destaco as razões pelas quais defendi algumas ideias que me pareceram polêmicas ao público presente. Não falarei diretamente das discordâncias em si, em muito refratárias das diferenças de preceitos da sociologia e da filosofia. Tratarei apenas dos elementos das discordâncias que podem de alguma forma interessar ao debate de forma mais específica, na medida em que dão conta da discussão tal como percebida pela sociologia a qual pratico. É preciso mencionar a importância de olhar para o lugar de onde falo, porque isso ajuda, da perspectiva na qual me insiro, a esclarecer como a partir desse lugar, podemos entender melhor também o propósito do próprio debate. Minha fala se insere no debate imbricando-se a ele e, só se torna inteiramente útil na medida em que é percebida como um esforço reflexivo, ou seja, na medida em que a sociologia é percebida como forma de pensar que se obriga a refletir o seu próprio papel ao se ver obrigada a entender o papel do outro.

Dito isso, acredito que em parte a tensão gerada por minhas palavras se deu por duas razões principais:

1-a primeira foi o próprio contraste do meu ponto de vista com a visão da palestrante, Laura Buarque Gadelha. Um contraste que se deu entre a leitura filosófica e a sociológica das expressões artísticas. A filosófica buscando fundamentos existenciais da justificação do trabalho artístico. A sociológica investigando sobre as condições sociais (materiais e simbólicas) da produção artística. Mas não vou me ater a essas diferenças porque acredito que as divergências se explicam melhor pela afirmação detalhada dos dos pontos de partidas e posições adotados por mim. E como penso ser impossível em texto dessa natureza dissolver em síntese conciliatória os pontos de vista conflitantes entre si, preferi falar sobre a forma de operar a construção do conhecimento da sociologia. Construção que se dá, na forma como a concebo, a partir do senso comum, mas contra ele.

2- a segunda aparece na própria resistência de alguns participantes do público à ênfase dada por mim ao pressuposto sociológico que lida com a dimensão material da arte que seria, em certo sentido, condição para produção de bens simbólicos. Visão que por ser radicalmente antirromântica e desencantada, trata o metier artístico como atividade específica, mas não como algo que tenha uma essência socialmente diferente de outras formas de produção culturais. Esta visão é comumente lida como ataque às dimensões transcedentais da arte, quando na verdade, antes de invalidá-las, serve para situá-las no sistema mais amplo de que participam. Ou seja, não se nega a existência do universal. O que se afirma, contudo, é a “construção” do aparato de transcendência, ou, como apontado por Bourdieu, a existência histórica das condições sociais da produção da universalidade.

O sociólogo da arte é, por tudo isso, um ente crítico em dois sentidos. Por um lado, a sociologia é crítica porque designa e efetua uma negação construída do senso comum ( ie. nega que exista equivalência inequívoca entre o lugar comum das opiniões recorrentes e partilhadas e as verdades por trás dessas opinões). Por outro lado, ao construir um discurso desse tipo, ela tenciona em seu limite com a experiência nativa das pessoas envolvidas com a arte, expondo o sociólogo às respostas negativas ao que ele propõe, interpreta e explica sobre aquele universo.

 
Os pressupostos do debate

 
Algumas oposições foram usadas como elementos de base para o debate. Cito aqui apenas o principal dos antagonismos: o que opunha, de maneira estrutural, a “arte artesanal” à “arte de mercado”, ou, melhor e mais especificamente, o que opunha a arte por assim dizer mais pura à “arte que é produzida em função dos editais”, que seria por isso condicionada, restrita aos termos do edital e por isso menos artística, porque menos livre, menos fruto do desejo profundo da realização artística, da “necessidade da arte”. Em minha opinião essa oposição aparece como resultado do principal elemento de provocação feito pelo C.A.S.A, expresso de maneira inequívoca na pergunta “e o pulso ainda pulsa?”. A questão tinha como objetivo válido nos levar a nos perguntar e imaginar o que sobra de arte depois da implementação do sistema de captação de recursos por editais em Pernambuco. Ora, o problema nesse tipo de questionamento é que para além da pergunta há a intenção da resposta. No meu entender, por serem oposições que se articulam já de maneira a trabalhar as opções subjetivas de cada artista ao vínculo que se tem às classificações sociais legítimas e ilegítimas da arte existentes, essas oposições muitas vezes inibem o debate essencial e mais concreto: a discussão e questionamento sobre quais sãos as condições (sociais, econômicas e culturais) que permitem ou não a produção de uma arte de qualidade (em termos estéticos, de rentabilidade material, de construção de vínculo da arte como elemento estruturante da cultura).

Não foi por outra razão que comecei minha fala, para além da oposição ao que se tinha dito, dizendo que era difícil opinar sobre o universo do teatro, sobre o mundo artístico, com o déficit real de trabalhos consistentes nos informando sobre as condições de vida e da atividade artística dos artistas de Pernambuco. Não é que não tenhamos trabalhos bem feitos. Isso seria menos grave. O que acontece é bem pior: não temos sobre as mais diversas formas de arte nenhum dado atualizado a respeito de informações básicas relacionadas ao ofício dos artistas.

 

 

O exemplo sem exemplos do teatro

 
Para começar a conversar de maneira séria a respeito das condições de trabalho dos artistas, e aqui falo apenas do ponto de vista da sociologia, seria preciso uma pesquisa que pudesse a um só tempo identificar, classificar e desmembrar os diferentes tipos de atores e especificar categorias de análise pertinentes ao ofício. Sem isso, como saber de fato por que as coisas acontecem da maneira que acontecem? Sem isso, como entender de fato por que os artistas estão fazendo o que fazem da maneira que fazem? A título de comparação, trouxe o caso da literatura, gênero sobre o qual conhecia pesquisas muito interessantes. Lembrei-me à ocasião do debate de um trabalho excelente, feito por um pesquisador francês. Nele, depois de ter produzido uma lista abrangente de escritores, o autor produzira um questionário capaz de dar conta de categorias analíticas tais como: a relação entre o tempo e a prática da escrita, as formas de entrada dos escritores no universo literário, as representações da escrita (se o escritor se vê como profissional, como amador, se escreve por paixão, ou para ganhar dinheiro etc.), a relação entre a escrita e o meio (se a família apoia, o que os amigos dizem, o que atrapalha, o que ajuda etc.), as editoras (como tiveram acesso, quais as dificuldades, quem ajudou, etc.), se ganhou prêmio, os gostos e afinidades, as condições de vida, as atividades profissionais principais e as secundárias. A pesquisa mostrava o escritor, agora entendido pela categoria construída pela pesquisa através do questionário, para além das impressões da experiência individual de cada um, como um ser diverso e multifacetado, mas em sua grande maioria vivendo, no que diz respeito à sua própria profissão de escolha, a literatura, uma relação ambígua e precária.

Ora, é no cotidiano do artista que a arte se faz. Como entendê-la sem esse conhecimento mínimo da possibilidade de materialização de seu ofício? A romantização social das práticas artísticas pode até prencher alguns anseios (as noções de talento, dom, inspiração, transcendência, imanência, etc. estão aí para operar essa terapia), mas ela não informa sobre as realidades concretas necessárias ao exercício dessa experiência vivida por muitos de forma sincera como sendo fruto da genialidade de alguns seres especiais aos quais chamamos de artistas. Valeria muito a pena descobrir (descrever, analisar) como os atores organizam o seu tempo de trabalho, por exemplo. Seria muito interessante investigar o que eles são quando não estão sendo atores, inquerindo sobre o cotidiano realmente vivido pelos artistas: estariam eles sendo produtores, divulgadores, professores? Quanto tempo gastam com cada atividade? Qual a relação existente entre essas atividades? Quais ajudam ao exercício próprio do metier, quais atrapalham?

 

Alcance e limite da fala de um não especialista sobre o teatro

 
De fato minha intervenção, por conta das limitações mencionadas (falta de pesquisas a respeito, ausência de dados), não tinha como intenção agregar novo conhecimento a respeito do mundo do teatro, mas alertar para os efeitos nefastos da impressão de conhecimento que a ausência desses estudos e dados produz. Por fazer parte do mundo, todos nós temos alguma forma de conhecimento gerado pela experiência vivenciada nele. Um conhecimento importante, apesar de parcial e limitado. Apesar de parecer arrogante, pedante e intrusivo, o conhecimento sociológico da arte e dos artistas carrega consigo em seu âmago o valor em realidade humilde: o de ser fruto do exercício quase mecânico da organização racional dos conhecimentos parciais gerados pela experiência mais ou menos reflexiva das pessoas. Isso é feito pelo artifício de tratar como objeto de estudo as informações geradas pela experiência vivida pelos artistas. A credibilidade de tal procedimento, apesar de não garantir nenhuma liberdade adicional concreta, é um caminho possível para o melhor entendimento dos condicionamentos e possibilidades reais da produção artística, também no teatro. Na falta de uma boa sociologia da arte teatral, de boas pesquisas sobre os condicionantes e as condições de possibilidades reais da atividade artística no teatro pernambucano, ficamos mais reféns das lógicas que são responsáveis por sermos quem somos da maneira que somos. E nada mais.

 

De fora para dentro do debate

 

Na verdade, o debate aconteceu muito a partir do que é que os artistas esperam ou precisam, o que é muito bom. Mas há também a parte do edital ser uma política pública que tem objetivos outros que não só a legitimidade da arte de essência: é uma política cultural e cultura não é só criação visando epifania. Daí decorre que talvez não seja função dos editais dar conta completamente do amparo e estímulo a esse tipo de criação (por opção também, não só por incapacidade) e que é preciso se investigar quais são as outras formas de se criar condições para ela (já que os que formam o C.A.S.A acham que é importante).

Digo isso porque me parece que minha opinião de sociólogo não invalida completamente o que se pode chamar de busca por uma arte livre, somente coloca atenção nas raízes que a conectam ao solo, para que ela possa acontecer em mais consonância e coerência com os preceitos que ela mesma delibera como sendo seus. Percebi o C.A.S.A. olhando pros editais desde uma perspectiva única (com alguma legitimidade, e sei que isso é apenas uma impressão minha) e esperando ser atendido, mais ou menos como os ciclistas em relação à política de trânsito, quando estes dizem não existirem as condições para efetividade do deslocamento por bicicleta porque não há políticas públicas para isso. É preciso desmontar essa perspectiva única, mas não invalidar uma intersecção dos editais com ela, o que deve ajudar a ajustar os termos da reivindicação que se pretende.

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*O convite me foi feito no sentido de fazer parte do debate como provocador de questões, e não como especialista, que de fato não sou, da área do teatro. Nesse sentido me senti à vontade para falar das impressões justificadas ou não das visões de conhecimento existentes e ali alocadas e não de conhecimentos concretos a respeito do universo do teatro. Foi apenas na condição de “provocador” que me pareceu legítima uma fala que continua a falar do teatro e dos atores sem de fato falar deles, reconhecendo apenas a ausência de trabalhos a esse respeito. 

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