Batman Gay e Algumas questões sobre o A Dominação Masculina

Fui ontem assistir ao novo Batman. Gostei e não vou comentar muito do filme para não ser estraga-prazer: “o mocinho morre no final, o mocinho morre no final, o mocinho morre no final!”. E o mocinho não é Batman, entendem?

Na verdade ter visto “O Cavaleiro das Trevas” é mais um pretexto para falar outra coisa: o tratamento analítico de política dos movimentos de homossexuais. Um tema que é de difícil abordagem, entendam! Mas não seria nada ruim usar Batman como ensejo, uma vez que a personagem central do filme vive a maior das antinomias experimentada pelos movimentos gay e lésbico: o dilema da visibilidade e o da invisibilidade no espaço público. O que é uma ótima dica de leitura do filme, não acham?

Bem, como diria Paulo Honório. Continuemos.

Eu concordo e não é de hoje com a seguinte afirmativa: “o movimento gay e lésbico põe ao mesmo tempo tacitamente, pela existência de suas ações simbólicas, e explicitamente, pelos discursos e as teorias que ele produz ou os quais ele dá vazão, certo número de questões que estão entre as mais importantes das ciências sociais e, algumas delas, são realmente novas.” (Bourdieu, 1998, anexo).*

Mas antes de concordar com tal afirmativa eu já tinha essa intuição. No ano em que entrei na universidade (1998) terminei sendo motivo de brincadeiras de amigos por ter defendido a idéia segundo a qual o “homossexualismo era um assunto importante para a sociologia”.

Dessa forma esse tema me parece ser dos mais importantes não apenas pela dificuldade específica de tratar de categorias que “definem” ou “se definem” a partir de critérios tão difíceis de “fixar” como “gays” ou “lésbicas”, mas também pela dinâmica mesma de ter que enfrentar, socialmente, enquanto homem e hetero que sou, os medos e receios que a própria sociedade criou para mim e que eu assimilei e reproduzo de varias maneiras.

Resumo na pergunta que faz Bourdieu em seu texto sobre o assunto o que existe de difícil na abordagem sociológica de classificação e categorização dos movimentos gay e lésbico: “se deve tomar como critério as práticas sexuais – mas quais, as declaradas ou as escondidas, efetivas ou potenciais, a freqüência em certos lugares, um certo estilo de vida?” (Ibid,1998, anexo). Vejam que essa dificuldade especifica não existe de maneira tão evidente quando se fala de feminismo porque a “feminilidade” se caracteriza aquém e além das práticas sexuais.

A própria dificuldade de abordar o tema com as ferramentas usuais da sociologia, por si só, já traria um largo leque de possibilidades heurísticas do ponto de vista da produção do conhecimento sobre o social. Mas apesar de todo esse campo de possibilidades novas, eu gostaria de me ater aqui a algo que antecede esses problemas no livro supracitado: o ponto de vista de Bourdieu sobre o feminismo porque, por desconhecimento ou má vontade, ou mesmo por exagero feminista, sua reflexão sobre o assunto, que é tributária de seu trabalho mais extensivo sobre outros domínios do mundo social, foi julgada como uma visão meramente “masculinista” tirando a atenção do essencial em sua argumentação.

Contexto de minha opinião

Tive a oportunidade de durante o meu doutorado participar de alguns seminários de aula com Betânia Ávila do SOS Corpo. Nas poucas e boas conversas que tive com ela pude falar da perspectiva analítica a qual Bourdieu encarnava. Naquele momento de sua vida, que é o momento em que ele escreve o La domination Masculine, cujo anexo elabora algumas reflexões sobre o movimento gay e lésbico as quais me referi, ele está admitindo uma postura política mais forte e mais “engajada” do que a que ele admitia para si em épocas remotas de sua produção acadêmica (ler a esse respeito o artigo de Jean-Claude Passeron “ Mort d um ami disparition d um penseur” que foi publicado em português no livro Trabalhar com Bourdieu). Nessa visão tardia de Bourdieu de ciência não se pode perder de vista, no meu entender, aquilo que o sociólogo entendia como função da sociologia crítica, que é derivada da reflexividade específica de uma sociologia dos condicionamentos sociais e de daquilo que ela pode produzir.
Explico-me. Uma das críticas que mais ouço a respeito do A Dominação Masculina é que o autor não fala em seu livro das mulheres, mas, como diz o título do livro, da dominação masculina, ou seja, do homem. Ora, por má fé ou preciosismo de linguagem, não se percebe com esse tipo de crítica algo essencial na postura crítica de uma sociologia que visava captar condicionamentos com vista ao entendimento mais preciso do que Bourdieu chamava de efeito de doxa, em bom português: tudo aquilo das lógicas de funcionamento do mundo social que faz que as obrigações e interdições do mundo sejam de alguma maneira respeitadas, fazendo que os atos de subversão e delitos (portanto visados pelas feministas como instrumentos políticos de transformação de um estado de coisas dado) sejam encarados como “exceções”, ou como “loucuras”, “desvarios”.

Como exemplo dessa visão de ciência dele, vou trazer a metáfora que Bourdieu usara para falar dos efeitos que possivelmente ele gostaria de ver a sociologia produzindo, principalmente a dele. Falando do sonho que a especie humana sempre nutriu pela idéia de voar (pensando em Icaro), Bourdieu lembrava que foi estudando a gravidade, ou seja, todos os condicionamentos que fazem o homem(enquanto espécie) se manter colado ao chão, que possibilitou o mesmo de realizar esse sonho. Pois bem, Bourdieu tem consciência de que entre o conhecimento dos condicionamentos sociais e a liberdade que esse conhecimento pode ajudar a produzir existe um vasto hiato que só pode ser alcançado por uma atitude política diante do próprio conhecimento e do mundo. Mas concebe que a sociologia deva estudar aquilo que produz a necessidade do feminismo, a gravidade que limita o vôo da mulher, a dominação masculina.
É desse ponto de vista que as qualidades e defeitos do livro deveriam ser tomados, acredito.

Fico aqui com um trecho muito bonito do livro, quase lírico, lírico a seu modo evidentemente, onde Bourdieu fala sobre nada mais nada menos que o amor:

“[…] o corte com a ordem ordinária não se completa de um só golpe e de uma vez por todas. Ele se faz somente por um trabalho de todos os instantes, sempre recomeçado, que talvez arranque das águas frias do calculo, da violência e do interesse “da ilha encantada” do amor, esse mundo fechado e perfeitamente autárquico que é o lugar de uma série continua de milagres: aquele da não-violência, que torna possível a instauração de relações fundadas sobre a plena reciprocidade e autorizando o abandono e a reencontro (remise de soi) de si; aquele do reconhecimento mutuo, que permite, como disse Sartre, de se sentir “justificado de existir”, assumido, até dentro de suas particularidades as mais contingentes ou as mais negativas, dentro e por uma espécie de absolutização arbitrária do arbitrário de um encontro (“porque era ele, porque era eu”); aquele do desinteresse que torna possível as relações desistrumentalizadas, fundadas na felicidade de dar felicidade (bonheur de donner du bonheur), de encontrar dentro do maravilhar-se com o outro, notadamente no emaravilhamento que ele suscita, as razões inesgotáveis para maravilhar-se.” (Bourdieu, 1998, p.117) *

PS: Depois comento o anexo do livro que se chama “Questões Sobre o Movimento Gay e Lésbico” e que acho muito interessante. Sobre o que acontece atualmente em Pindorama sobre o assunto, texto interessante aqui.

*BOUDIEU, Pierre.(1998) La Domination Masculine, Paris, Seuil.

Do jeitinho ao sem jeito: mudanças e mordaças.

Meu último trabalho acadêmico defendido foi aos meus olhos um “fracasso sociológico”. Ele queria ser um trabalho de sociologia sobre A Padaria Espiritual e terminou sendo uma reflexão sobre o “tentar dar conta desse objeto” usando as ferramentas conceituais legadas pela sociologia de Pierre Bourdieu. O engraçado e estranho é que um ano antes desse trabalho eu havia feito um outro, sobre São Bernardo de Graciliano Ramos, com uma postura sociológica mais intensa e empírica, tratando do romance como fonte de reflexão sobre a presença da sociologia na obra literária supracitada.

O mais curioso é que depois de ter passado um ano a mais (de socialização acadêmica) e tendo dois interlocutores que dão forte ênfase à sociologia empírica, Norbert Bandier e Bernard Lahire, eu tenha feito um trabalho que, a contrapasso do anterior, era uma reflexão epistemológica com pouco volume de análise material. Esse retorno “teorizante” a um trabalho conceitual sobre os conceitos tinha certa razão de ser: fazendo um trabalho a pedido de Bandier – que pouco afeito à língua portuguesa tinha dificuldades de dar continuidade ao estudo do grupo de poetas cearense do final do século XIX que tanto lhe intrigava – tentei tirar proveito, com o material que ele tinha em mãos (que não era muito) do que ele já havia feito. Meio sem jeito, tentei fazer uma leitura minha do objeto proposto por ele. O resultado foi uma reflexão sociológica confusa, sem base empírica satisfatória, que se apoiava em uma postura sem dúvida reflexiva, mas que dava pouco ou nada ao entender sobre a Padaria Espiritual e seu contexto sócio-histórico.

Volto aqui ao que me deteve no trabalho sobre A Padaria Espiritual e seu contexto. Eu tinha o entendimento de que naquele período de balbuciar da Republica, momento de euforia causada pela Abolição e pela própria proclamação… eu tinha o entendimento de que nesse contexto não se podia falar principalmente na periferia do país em um campo estruturado de produção cultural e, muito menos, em um campo literário. Na época eu estava lendo Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda, que trazia a respeito de época similar a que eu estava estudando uma análise em modo de ensaio, sobre a relação do tipo de socialização do brasileiro com algumas de suas disposições (ou falta delas) para lidar com as fronteiras entre os espaços público e o privado, discernimento que era exigência da modernização do Estado nos moldes da evolução que teria sido alcançada em alguns países da Europa. Nesse sentido, apoiado na instigante intuição ideal típica de Sergio Buarque, tentei ler os jornais que foram publicados pela Padaria Espiritual sistematizando os “atributos de cordialidade” ou os “aspectos não intelectuais da vida intelectual” (causadas pela socialização específica dos brasileiros) dos integrantes do grupo. O resultado é que não encontrei, para meu desespero, mas para o bem da reflexão posterior, nenhum atributo que pudesse ser disposto de maneira sistemática como “traço marcante da forma de produzir dos intelectuais que fosse cordialidade” nem, de maneira absoluta, nenhum aspecto não-intelectual da postura dos intelectuais que pudesse “falsificar” sociologicamente a “positividade” daquela produção específica. A idéia de homem cordial parecia assim só poder se amparar em exemplos esparsos de nossa realidade histórica e, nesse sentido, o exemplo da produção da Padaria Espiritual não seria diferente. Só forçando uma interpretação, eu poderia dizer que que os intelectuais da Padaria Espiritual faziam debates literários falsos no sentido de que debatiam literatura antes da formação de um campo literário relativamente estruturado em Fortaleza. Foi ai que percebi que existia algo de profundamente normativo na idéia de campo e que diz respeito ao vínculo que ela tem com o contexto social que deu vazão ao seu substrato analítico. A idéia de campo, apesar de ser um conceito relacional apoiado na idéia de autonomia relativa, revela todo seu o lastro com a sociedade francesa na medida em que, resumo em síntese: “quando mais a autonomização dos campos é visto como um processo endógeno para a França, mais se torna preciso levar-se em conta um sistema de importações no caso do Brasil”. Sendo ele um conceito elaborado para dar conta de lógicas internas de autonomização, parecia-me um grande desafio poder instrumentalizá-lo de maneira positiva para dar conta de um caso de periferia da periferia, como de um grupo de poetas produzindo em Fortaleza, Céara, daquela época.

Dito isso, volto ao meu post anterior para refletir sobre os comentários de Cesar. Eu sou muito crítico à idéia de jeitinho brasileiro em vários planos. E um deles é o que trata do jeitinho, como no caso do Raízes do Brasil, como traço de uma brasilidade fruto de uma socialização homogênea que seria dada pela hipertrofia das lógicas do privado sobre o público. Essa crítica eu faço no plano intelectual mais ou menos pelas razões dadas e alcançadas pelo fracasso do meu referido trabalho “sociológico”. Mas, como moderação a isso que digo, entenda-se que esse ser crítico não quer dizer jogar fora a banheira de água suja com o menino dentro. E aqui chego à razão de ser de minha “mordaça voluntária”: na minha vivência do dia a dia, eu sinto nas pessoas que o tipo de diferenciação feita entre os espaços público e privado é muito, muito, muito controversa. Inclusive eu mesmo, com toda reflexão e cuidado, tendo a confundir, em momentos de tensão principalmente, o que é crítica ao prefeito e o que é ao meu pai. Talvez isso valha para qualquer contexto (não creio, visto que em alguns países a figura do político é muito mais próxima a de um “funcionário administrativo” do que a de “profeta carismático” como aqui). Em todo caso, como toda mudança que o Brasil vem passando, é dessa percepção pessoal que vem minha “omissão interessada”. Vontade de abrir o verbo não faltou. Mas fico pensando que a ausência, ao menos dessa perspectiva específica que consigo vislumbrar, é a maneira mais digna de, pelo silêncio, manter a integridade pessoal e a dos próximos.

No mais me sinto extremamente contemplado com a sentença do amigo: “Nunca a classe política ficou tão quieta e unida. O rabo preso parece ser a lei universal, o nomos fundador do campo político de Pindorama. Tucanos e petistas, antes tão beligerantes, agora se unem, não por um projeto de nação, mas por uma cumplicidade abjeta com os crimes de Dantas.” Sim, sim. O fato de Dantas estar ao menos respondendo por seus crimes do colarinho dourado, é indício de mudança. Mas o que indica o pé atrás do companheiro… um “o que isso companheiro?”

A lei do silêncio…

Dos blogues que eu tenho contato, o meu é o que trata menos de política. Não que eu não goste ou tenha desinteresse. Também não acho que seja covardia. Penso ter sido Antonio Candido que disse certa feita algo parecido com isso: o intelectual que não participa do processo político corre o risco de ser chamado de omisso, e o que participa, de cooptado. No meu caso, filho de político exercendo cargo no executivo, a dimensão dessa tensão pode ser multiplicada por cem. Principalmente se pensamos o Brasil como um país onde as fronteiras entre público e o privado continuam dando o que falar em sua promiscuidade sem fim.

Aos amigos sempre declarei minhas opiniões abertamente. Aqui no blogue, poucas vezes. Insisto, não é covardia. Inclusive, quando perguntado, disse o que pensava publicamente. O problema é que ser família de político implica em ser “familiar” aos interesses do político, o que afeta, necessariamente, principalmente em nosso contexto, as possíveis recepções de juizo para bem ou para mal, alterando em efeito de lupa a dimensão crítica que, se positiva não vale o que devido porque “está protegendo interesses da família”, se negativo vale mais do que o pensado porque “até mesmo alguém que tá dentro, na intimidade, se mostra contra”. Nesse sentido é muito arriscado tomar posições do que é certo ou errado num embate político no espaço público brasileiro, porque havendo problemas de diferenciação entre as esferas, o cidadão vira filho e o filho, cidadão. Quem dá o tom político de uma opinião minha não é o discernimento de uma dada idéia de recusa ou aceitação, mas a maneira que se lê a política num dado contexto.Assim, opiniões de filhos, amigos, parentes, serão sempre frutos de conchavo (quando favoráveis) ou traição (quando não). Claro que não é necessariamente assim. Não acredito que não se possa sair desse impasse. Mas por excesso de cautela, principalmente em época eleitorais, sabidas as armadilhas de contexto, hesitei bastante em ponderar sobre fatos e acontecimentos da política, tanto no cenário local quanto Nacional.

Mas hoje me pergunto: como calar diante da operação abafa feita escandalosamente para proteção dos figurões sendo ameaçados no caso Daniel Dantas? Como não aceitar como minha uma carta aberta que expressa meu sentimento também quanto ao caso? Como não denunciar o mascaramento da bandidagem feito pela grande imprensa na cobertura da operação que poderia, ao menos é esse o sentimento que dá, redimir um pouquinho o Brasil da podridão de seu passado de cartas marcadas para um presente mais inseguro para os que queiram fazer falcatruas?

Dói na alma, profundamente, vê que o medo venceu a esperança nesse país, mais uma vez…

Claro, a lei do silêncio continua pelas razões alegadas. Mas declarar o prejuízo na minha alma de brasileiro, porque não há rendas sem lei, ah, isso eu precisava.

Depois da morte de Dercy:As dez coisas mais importantes de uma vida… Num sábado à noite.

1- Matar largatixas e formigas e descobrir que mesmo depois de tê-lo feito por prazer (na infância) isso não fez de você um genocida.
2- Ter passado pelos anos 80 e 90 e acreditar que o melhor (para bem e para mal) ainda estar por vir na sua vida.
3- Relativizar a importância de sua tese.
4- Não ter se chocado com os palavrões da Dercy durante tanto tempo…
5- Manter a esportiva e a alegria no sábado à noite ao tomar conta de sua filha, que apesar de linda como uma estrela, lhe faz pensar na importância relativa de sua tese de doutoramento.
6- Poder acreditar que derrubar arvores, comer carne bovina, beber vinho, comer proteína animal, nem sempre são crimes contra o famoso “direito humano das plantas e dos animais”.
7- Poder não ser vegetariano e comer a loira linda e não a moita, quando o caso for de moita.
8- Achar normal não pensar em sexo quando quem estava falando putaria era a Dercy Gonçalves.
9- Poder dizer que as dez coisas mais importantes de uma vida … Num sábado à noite na verdade são nove.

O Escafandro e a Borboleta

Como não sou crítico de arte nem de cinema, fico com receio de meu juízo, sempre. Fico me perguntando: o que as pessoas teriam a ganhar com minhas impressões de sentido sobre um filme?

É uma aventura julgar um trabalho como O Escafandro e a Borboleta, do artista plástico Julian Schnabel (1951). Eu o assisti ontem. Não sabia da existência do filme. E acho que eu seria necessariamente incompetente se o meu objetivo fosse dizer algo de realmente interessante sobre o trabalho dele como cineasta. Um olhar mais avisado faz melhor esse trabalho, e deixa a insônia gerada pelo filme com gosto de entendimento. Por isso deixo ao longo do post alguns links com opiniões mais profissionais sobre o filme para os interessados.

Mesmo desavisado me aventuro a dizer algo. Pois a vontade que tive depois do filme foi de soltar o verbo. Queria me desprender dos casulos do medo de dizer as coisas, e castrar esse medo tolo de se mostrar ignorante. Então senta que ai vem história…

O filme fala da vida de Dominique Bauby. Jornalista e pai de duas crianças que sofre um acidente vascular cerebral e entra em um coma profundo. Ao sair, se dá conta que todas as suas funções motoras estão deterioradas. Foi afetado por aquilo que a medicina chama de “loked-in sindrome”, ou seja, a síndrome do encarceramento em si. Na sua nova condição, Bauby não podia mais se mexer, e mesmo a respiração era auxiliada por aparelhos.

O filme lida com história de um quase vegetal: alguém que tinha apenas o olho esquerdo funcionando com dificuldades e sua audição. Os dois sentidos se tornaram a ligação dele com o mundo e com as outras pessoas. Piscando uma vez para dizer “sim” e duas para dizer “não”, com o axilio de uma terapeuta consegue elaborar um método de comunicação também pela escrita. A partir de um alfabeto dito em voz alta em função do uso das letras, ele começa a poder “dizer” letras, palavras, sílabas, frases, páginas e páginas.

O filme conta a história narrada no livro escrito pelo jornalista em sua situação de cárcere interno a partir do olhar desse olho. As escolhas de câmera e áudio foram feitas em função dessa situação de aprisionamento, onde os enquadramentos fixos com desajustes no foco trazem a impressão de um olhar que via o que nós víamos enquanto espectadores. O áudio, que traz além do som ambiente a voz de Bauby em off, dá contorno a consciência de si e da situação que são o alicerce da vida que está sendo recontada. Sendo a readaptação mesma do livro, creio que as escolhas cinematográficas feitas foram muito boas. O resultado é que entramos na história como se pudéssemos se colocar na posição de alguém que está numa situação limite, como é o caso real do escritor do livro L escaphandre et le Papillhon. Acho que por isso o filme ganhou o Prix de la mise en scene em Cannes 2007.

Algumas cenas que me marcaram por ordem do impacto que me causaram:

1- Jean-Don (era o apelido de Jean Dominique Bauby) conversa com a amada Inês por telefone. Sua ex-esposa é quem media a conversa. Sem cair na solução piegas que seria colocar Jean-Don como alguém que se arrependeu das escolhas que fez para reencontrar o amor de sua vida inteira, a cena termina com sua ex-mulher lendo no piscar do olho atormentado um dolorido “ eu te espero todos os dias” de Bauby para sua amada.
2- O uso da memória e da imaginação do enfermo. A cena em que ele se imagina jantando ostras com a amada…
3- Os sonhos que representam a solidão, onde ele se vê descendo para o fundo do mar dentro e de um escafandro.

Texto mais profissional a respeito do filme, aqui gente.

É isso por hoje.

Sonhos, reencontros e encontros

Tereza Noronha

Alguns dizem que nossos sonhos são expressões de nossos desejos mais profundos. Alguém como Freud, por exemplo, dedicou todo um projeto científico a interpretação de sonhos, achando que conhecendo as lógicas dos sonhos estaria tocando no mecanismo regulador de nosso inconsciente.

Pois bem. Sonhei várias vezes com Tereza Noronha, falecida faz alguns anos e pessoa por quem nutro profunda admiração. Em meu sonho ela revivia, voltava da morte alegando erro médico. O interessante é que algo de similar ao que venho estudando no romance realista acontecia durante meu sono: alguns acontecimentos davam contorno e detalhe ao acontecido garantindo a força de persuasão do sonho que, para o sonhador, durante o sono, pareciam a mais pura realidade.

Encontrava-me com ela que me recontava a sua morte e sua volta. Eu, cético, não conseguia acreditar nos meus olhos e ouvidos. Meu sonho insistira em sua própria veracidade. Tereza me explicava, com a paciência que sempre teve comigo, por razões cientificas, o que de fato havia acontecido. O médico não havia esperado o suficiente e a parada cardíaca teria sido apenas algo temporário. Então ela acordou, e como o corpo dela ainda não tinha sido enterrado, pôde voltar à vida e vir conviver novamente com os que tanto amava. Ainda cético, mas ao mesmo tempo já crente no meu sonho, encontrava Valéria, filha de Tereza, e, eufórico, não conseguia encontrar palavras para dizer o indizível. Não acredito em milagres, mas meu sonho o havia realizado e podia ver a alegria que tudo aquilo causava.

Uma outra amiga minha, Maíra, uma vez me disse que nunca dividiria um sonho dela num espaço público. O sonho revelaria intimidades profundas demais. Hoje, com a psicanálise, entendo melhor o que ela quer dizer com essa história de intimidade contida nos sonhos. Mas teimo trazendo alguns sonhos para cá, pois, se uns são íntimos, outros, os que expressam desejos profundos, precisam ser divulgados. E isso porque, por piegas que sejam o amor e a saudade, é quase sempre lindo o querer de volta alguém que gostamos e que já se foi…

Hugo e Camille

Recebi a visita de dois jovens (mais jovens do que eu) canadenses aqui em casa. Na verdade um casal de estudantes de Antropologia. Ele estuda o Rio de Janeiro, ela algum lugar que não entendi bem na Índia. Os dois moram em Montreal e são figuras muito simpáticas. Passamos boas noitadas a conversar sobre a violência no Brasil (que para ele era o grande defeito do país) e sobre nossas disciplinas de trabalho. Falaram das impressões deles do Rio, dos cariocas, das favelas, da maneira de ser do brasileiro. Ele chegou a dizer que gostaria de ter se encantado mais com o país, mas que a violência o impedia (ele foi agredido três vezes no Rio). Assim, comigo, que tive uma experiência internacional de morar fora durante um tempo, ele se abriu dizendo o quanto ele sentia falta da cidade dele, onde as pessoas podem ir e vir sem ter medo da noite e das outras pessoas.

Bem, é assim o meu Brasil nas grandes cidades. Dói e nos sentimos presos. Em todo caso a estadia deles aqui deu uma pitada de vida toda especial a minha semana de rotinas burocráticas. Obrigado Hugo e Camille e voltem sempre!

Vigilância Sanitária

Estava relendo umas coisas sobre metodologia da pesquisa na sociologia para reavivar a memória com alguns procedimentos quando me deparei com a seguinte frase:

“ A educação do pensamento científico ganharia em explicitar essa vigilância da vigilância que é a nítida consciência da aplicação rigorosa de um método. No caso, o método bem designado desempenha o papel de um superego bem psicanalisado no sentido em que os erros aparecem em uma atmosfera serena; além de não serem dolorosos, são sobretudo educativos.” (G. Bachelard… em algum lugar do Racionalismo Aplicado.Meus itálicos).

Eu já havia lido isso antes. Meu projeto de tese foi formulado em cima dessa postura da “vigilância da vigilância” por acreditar que em sociologia, mais do que em outras disciplinas, os métodos escolhidos informam sobre o tipo de conhecimento a ser elaborado. E que os erros de procedimento, que só podem ser julgados se comparados a outros, são os motores do rigor e da qualidade do trabalho propriamente analítico. Dessa forma historicizei meu projeto sendo sua própria feitura uma genealogia dos procedimentos e das escolhas adotadas para construção de minha problemática de estudo e objeto. Resultado: fui questionado a respeito da forma (que não trazia a clareza –respostas- de como as tarefas iriam ser realizadas) e do conteúdo (ora eu tinha dois objetos de estudo e não um, ora eu não tinha nemnhum objeto de estudo nítido). Além disso ouvi uma piada a respeito da vigilância sanitária, que não levei a sério porque imagino que algumas posturas intelectuais podem realmente servir de profilaxia no domínio da produção de idéias.

Mas o que me veio a mente ao reler isso é que nunca havia dado a devida importância ao paralelo feito por Bacherlard entre o processo de produção do conhecimento e a psicanálise. “Erros aparecidos numa atsmosfera serena” ecoam aos meus ouvidos como um pedido, uma súplica por um contexto de produção que se assemelhe mais com a “situação de análise” de uma relação psicanalítica. Lugar onde na “suspensão das dores” encontraríamos forças para “compreendermos melhor a nós mesmos” porque o confrotar-se consigo mesmo, nos termos novos da relação analítica, impõe limites ao superego, numa vigilância da vigilância pacificadora do Eu.